segunda-feira, 15 de junho de 2009

Um dia perfeito para ela

Ninguém saberá o que é uma doença terminal até conviver, diariamente, com a ameaça sombria, fria e pálida da morte pairando sobre uma pessoa querida. Uma doença terminal é quando a dona morte toca o interfone da sua vida e avisa: cheguei para te buscar, mas não sei quando iremos. E assim sendo ela vai se achegando, vai para a varanda, fica na espreita olhando pela janela, rodeia a casa como quem guarda os restinhos de vida só para si e vai adentrando a casa-corpo, vai se espalhando pelas paredes-poros. Então quando estiver completamente à vontade, a morte se deitará na cama-alma e esperará o último suspiro para então dirigir-se ao portão principal e despedir-se, temporariamente.
Já faz algum tempo que minha avó foi acometida de um câncer e mesmo sabendo que não há cura e que o dia final aproxima-se, fico pensando como seria se Deus concedesse a ela um presente: um dia, um dia perfeito, como seria? Impossível é incutir esta idéia em seu espírito sofredor, em seu estágio de saúde atual as dores são mais poderosas do que as fantasias e os sonhos são somente a vontade de que o pesadelo acabe logo. Porém, essa idéia sempre me visita e não posso deixar de sonhar para minha avó o dia perfeito para ela.
Sei bem quando engravidei desta idéia, porque as idéias mais bonitas que tenho não são relâmpagos, eu as cultivo, moldo, aparo as arestas, as alimento e quando acredito que estão prontas, as deixo nascer. Esta idéia do dia perfeito para a minha avó brotou ao lembrar-me da narrativa de um livro, que li e reli, intitulado: “A última grande lição”, o autor é Mitch Albom e em suas páginas relata as últimas lições recebidas de seu mais querido professor, acometido de uma doença terminal. As lições são semanais e entre elas está o conceito do dia perfeito. Quando Mitch, o autor e aluno atento, lhe pergunta o que faria se tivesse um dia inteiro de perfeita saúde, ele sábio pela vida, sábio pelas transformações da doença, responde: “Deixe ver... eu me levantaria de manhã, faria os meus exercícios, tomaria uma bela refeição de brioches e chá, nadaria alguns minutos, receberia meus amigos para um bom almoço. Eu os receberia em grupos de dois ou três para falarmos de suas famílias, de seus problemas, falar do que representamos uns para os outros...”. Simples assim.
O dia perfeito para minha avó, imaginado por mim, mas tenho certeza que ela concordaria, seria um domingo. Ela acordaria bem cedo e sairia de braço dado com meu avô para assistirem à missa das sete horas na igreja Matriz. Ao voltar ela assumiria o controle do seu lendário fogão à lenha e faria um almoço para a sua numerosa família. Filhos e netos estariam reunidos em volta de uma grande mesa, conversando animadamente e finalmente, em harmonia sobre coisas do cotidiano e ela então se juntaria ao grupo, sentada ao lado do meu avô, contaria algumas histórias que norteiam sua memória e todos escutariam atentos, porque saberiam que essas histórias, embora repetidas, são parte do mosaico que compõe sua trajetória. Depois ela vestiria seu casaco azul e cochilaria no sofá aos sons alegres das crianças correndo pela casa. Quando a tarde estivesse se despedindo, ela se sentaria no alpendre com meu avô e conversariam sobre coisas cotidianas, mas ela não se demoraria muito, pois logo em seguida iria para o seu saudoso fogão à lenha e faria uma deliciosa sopa, cuja fumaça chamaria todos da casa para aconchegar-se na cozinha. Ela ficaria ali, observando todos saboreando sua comida e pensando no quanto ter uma família é gratificante, apesar de todas as dificuldades, apesar de todas as batalhas. E depois de assistir televisão com todos reunidos na sala, ela iria dormir, um sono tranqüilo e cheio de sonhos.
Esse domingo, tão simples e tão perfeito, aconteceu tantas vezes sem ela se dar conta de que era seu presente em forma de dia e agora ele não mais voltará a acontecer, agora só resta o desejo de que ele voltasse, porque os desejos são seres insanos, não entendem a gravidade de uma doença terminal e persistem em existir. Agora também resta a memória para prover a consciência de que os dias perfeitos não têm datas marcadas, estão no presente e por isso chama-se presente. Quando a morte segurar na mão da minha avó e cruzar o portão principal, desejarei, imensamente, que do outro lado todos os dias sejam perfeitos, pois como disse o sábio professor Morrie Schwarts para seu amigo e aluno Mitch Albom: “A morte não é contagiosa. Ela é natural como a vida. Faz parte do contrato.”

Polliana Dias
Escrito em 10 de junho de 2009

No dia 11 de junho, às 11:00 horas da manhã, minha avó faleceu. O texto era para ser uma homenagem em vida e alegrá-la um pouco, desviá-la da dor, mas não tive tempo de mostrar minhas palavras. Fica agora como uma homenagem póstuma para ela que foi tão importante em minha vida.