quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Sobre frutos e pedradas

Kalil Gibran é um sábio escritor libanês falecido em 1931, porém, como os sábios e como os escritores, deixou um legado de valor intelectual incalculável. Eu não o conhecia, embora seja uma admiradora incansável de literatura, jamais havia lido nada de sua autoria, tão pouco ao seu respeito. Mas a vida conhece meios ignorados e surpreendentes de nos mostrar novidades, isto é, quando estamos com o espírito disposto a aceitar o desconhecido para evoluir. Tenho um colega de trabalho, um jovem senhor muito culto e também muito sábio, que fez a gentileza de me presentear com um livro deste autor: O Profeta. Este livro deve ser o mais conhecido de Gibran devido à sabedoria que emana das palavras gravadas nele, é um livro simplesmente encantador. Tempos mais tarde, este mesmo colega de trabalho, o Sr. Antônio de Pádua, meu vizinho de mesa, me presenteou com outro livro de Gibran, este contém os mais belos pensamentos do autor, lá li uma frase impactante que guardei num canto especial da minha memória, parece que estava prevendo que em algum momento ela me seria muito valiosa.
Há momentos na vida em que sentimos que tudo é luta, tudo é dor, tudo é sofrimento. É como se de repente a vida dissesse: “a hora do recreio acabou”, então ela aperta aquela sirene furiosa e começa a etapa de provações. É dada a largada então para uma avaliação pesada, um intenso vestibular da sobrevivência, várias provas de uma só vez, não há tempo para decidir qual delas fazer, todas precisam ser resolvidas, muitas vezes sem cola, sem ajuda de professor, sem a certeza de uma recuperação mais tarde caso haja uma bomba. Quando esses momentos chegam, o sentimento é de total impotência e desespero, é como se todos os problemas encharcassem todos os sonhos que vão ficando miúdos a ponto de escorregarem para um bueiro escuro. A enxurrada de acontecimentos ruins é capaz de fazer desmoronar tijolos e tijolos de batalha que estavam empilhados esperando pelo cimento de boas notícias. Foi num desses momentos de tormenta, em que vi muitos tijolos jogados ao chão, alguns quebrados, outros lascados, que a frase de Kalil Gibran ressoou na minha mente: “Somente as árvores que têm frutos são sacudidas e apedrejadas em busca de alimento”, ela está no livro “Os mais belos pensamentos de Gibran”, e refletiu esperança em meio ao caos.
É uma bela metáfora. A árvore que não dá frutos nem é notada, tão pouco é procurada, salvo quando o momento é de procura por uma sombra, mas é um momento passageiro, porque o sol muda de posição e a sombra pode não servir por muito tempo. Mas a árvore que produz frutos é vigiada enquanto floresce, quando começa dar os primeiros sinais de frutos já é cobiçada, quando os frutos aparecem então, não duram muito tempo. Assim, no momento nublado pelo qual passava, quando a visão fica turva por causa da tempestade, quando o desespero rouba o sorriso do rosto, quando o choro representa a dor de ver sonhos perdidos, esta frase trouxe um raio de sol e mudou todo o cenário. Através dela percebi que o apedrejamento que tantas vezes sofro, o qual será contínuo, faz com que o melhor de mim venha à tona. As pedradas são as decepções, os vários “nãos” que recebo quando espero um sim, os elogios e o reconhecimento que quase sempre não chegam, enfim, tudo isso faz com que meus frutos caíam quando recebo este saculejo, e se este saculejo acontece é para me deixar ativa no grande processo natural de evolução. Aprendemos muito mais num momento ruim, produzimos muito mais num momento de crise do que num momento de total plenitude. A vida quer nossos frutos, quer o melhor que pudermos oferecer, os frutos são a certeza do movimento, é um degrau na escada do crescimento. Acredito que quantos mais frutos retirarem de mim e a minha reação para com elas, minhas atitudes para com sua caída, serão os passos decisivos rumo à grande estrada da sabedoria. Sabedoria essa que Kalil Gibran esbanja em suas palavras.
A vida é movimento e nos movimentos da vida os frutos nascem, e em algum momento eles serão retirados de nós para produzir alimento, é uma rotação dolorida, mas edificante. Há uma canção interpretada pela Maria Bethânia, escrita por Guilherme Arantes, intitulada de Brincar de Viver, que dialoga com este texto, cujo refrão diz: “Você verá que é mesmo assim / que a história não tem fim / continua sempre que você responde sim / à sua imaginação / a arte de sorrir / cada vez que o mundo diz não.” Como eu disse antes, a vida conhece maneiras surpreendentes de nos fazer evoluir.

Polliana Dias Ferreira
06/12/2009

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Irmãos: simplesmente amem-se!

Começou assim:
_ Oi, vim pra ficar com você.
_ Que bom! e depois de um gemido: Estou sentindo muita dor, da outra vez não foi assim, esta dor está muito forte.
Lá estava eu, sozinha com minha irmã grávida se contorcendo numa cama de hospital no vai e vem das assustadoras contrações. Assustada, eis o adjetivo exato para definir o meu estado ao ver minha irmã se revirando de dor e não poder fazer absolutamente nada mais do que chamar a enfermeira incansavelmente, e também um adjetivo perfeito para definir o estado da minha irmã no momento em que seu segundo filho resolveu vir ao mundo, pois mais de uma vez ela disse: “da outra vez não foi assim, está doendo muito...”. Eu, que tinha uma visão romântica sobre partos, me deparei com uma dolorosa realidade. E enquanto fiquei ali tentando acalmar minha irmã, ofereci minha mão para ser apertada no momento em que a dor a açoitava, com a outra mão senti seu suor frio na testa e me pus a rezar, pedindo a Deus que o bebê viesse rápido para a dor ir embora, mas que desse saúde aos dois no momento decisivo, para que depois do vendaval, ambos pudessem aproveitar o sábado de sol que fazia fora do ambiente gélido do hospital.

Momentos angustiantes depois vi minha irmã seguir para receber seu bebê e nos quarenta minutos aflitivos que se seguiram mal consegui me concentrar nos meus pedidos a Deus, só fiz lembrar, e lembrar me fez compreender que o tempo é realmente um senhor poderoso, é o fogo transformando alimentos dentro de nós, alimentos chamados sentimentos.
As lembranças, seres alados, me carregaram para um passeio entre diversos momentos da minha convivência com minha irmã. Posso me ver ali criança: tímida, magrela, retraída, à sombra da irmã mais nova: linda, mais alta, carismática, engraçada, com uma vivacidade constante atraindo todas as atenções. Já então me perguntava como dois seres tão diferentes poderiam ter sido provenientes de uma mesma mãe? Já na adolescência refiz inúmeras vezes essa pergunta e não conseguia avistar nem um lampejo de resposta. A adolescência só piorou as coisas entre nós, havia uma competição velada. Ela continuou cada vez mais linda, adquiriu bem cedo um corpo escultural de mulher e continuou atraindo todas as atenções. Eu que queria meu espaço, resolvi abandonar a posição de sombra e lutei com as armas que me foram oferecidas: estudo. As comparações eram inevitáveis: “uma é mais bonita, mas a outra é mais inteligente, não, uma é mais espontânea e divertida, a outra é muito certinha” e dá-lhe brigas! Pois, por mais que as comparações viessem de fora, por sermos tão diferentes, usávamos nossas fortalezas para metralhar as fraquezas uma da outra e assim passaram-se anos em que lutamos numa arena imaginária, definindo irmãs como oponentes.
Quero dizer ao tempo que muito agradecida estou agora por ver que o fogo, embora aparentasse fraco, cozinhou na medida certa nossos sentimentos. Hoje vejo quanto tempo perdemos brigando, como não soubemos conviver com a diferença tão aparente e tão presente entre nós. Porque há um ditado que diz que se os dedos de uma mão não são iguais, por que os irmãos deveriam ser todos iguais? A graça está exatamente no movimento que a diferença promove. Se todos os dedos fossem completamente idênticos, talvez algumas tarefas não seriam cumpridas com louvor e embora diferentes, oferecem um perfeito encaixe. É aí que mora a beleza da diferença: o ajuste entre as partes na realização de um objetivo. Ninguém cresce com pessoas iguais a si, o crescimento está naquilo que o diferente impulsiona, na maneira como reagimos àquilo que foge do nosso panorama de correto, de bom, de bonito. Por isso julgamos tanto nossos irmãos, porque a diferença existente neles não é aceita por nós como natural, mas como algo que irrita fácil, que promove a discórdia inútil. Mas se observássemos mais os dedos, entenderíamos que a diferença deles é o encantamento da mão. A convivência com irmãos é a primeira prova da vida em sociedade e se são eles que foram destinados a ser parte da nossa vida, queiramos ou não, a convivência, esta arte de viver junto, precisa ser vivida de maneira saudável, mesmo que tardiamente.
Se eu pudesse dar uma dica somente aos irmãos que não se compreendem, eu diria: “Irmãos, simplesmente amem-se! Amem-se enquanto ainda é tempo!”. Demorei a entender, mas hoje sei que minha irmã, ou também meu irmão, poderá, em algum momento, me decepcionar ou me ferir. Mas também sei que poderei fazer isto a eles, e sei, mais ainda, que em algum momento eu precisarei de algum deles e certamente, sem pedir, eles me estenderão a mão, a mesma mão que tem dedos tão diferentes e se completam...
Terminou assim:
_ Vou embora agora porque vou à missa.
_ Reza pra mim?
_ Rezo sim, mas não precisa pedir, você sempre esteve nas minhas orações.
Saí do hospital chorando, primeiro de tristeza porque meu sobrinho teve complicações de respiração e ficou hospitalizado. Segundo, de alegria porque finalmente compreendi a importância do tempo, a alegria de ser irmã e ter irmãos, e principalmente o valor da diferença.

Polliana Dias

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Um dia perfeito para ela

Ninguém saberá o que é uma doença terminal até conviver, diariamente, com a ameaça sombria, fria e pálida da morte pairando sobre uma pessoa querida. Uma doença terminal é quando a dona morte toca o interfone da sua vida e avisa: cheguei para te buscar, mas não sei quando iremos. E assim sendo ela vai se achegando, vai para a varanda, fica na espreita olhando pela janela, rodeia a casa como quem guarda os restinhos de vida só para si e vai adentrando a casa-corpo, vai se espalhando pelas paredes-poros. Então quando estiver completamente à vontade, a morte se deitará na cama-alma e esperará o último suspiro para então dirigir-se ao portão principal e despedir-se, temporariamente.
Já faz algum tempo que minha avó foi acometida de um câncer e mesmo sabendo que não há cura e que o dia final aproxima-se, fico pensando como seria se Deus concedesse a ela um presente: um dia, um dia perfeito, como seria? Impossível é incutir esta idéia em seu espírito sofredor, em seu estágio de saúde atual as dores são mais poderosas do que as fantasias e os sonhos são somente a vontade de que o pesadelo acabe logo. Porém, essa idéia sempre me visita e não posso deixar de sonhar para minha avó o dia perfeito para ela.
Sei bem quando engravidei desta idéia, porque as idéias mais bonitas que tenho não são relâmpagos, eu as cultivo, moldo, aparo as arestas, as alimento e quando acredito que estão prontas, as deixo nascer. Esta idéia do dia perfeito para a minha avó brotou ao lembrar-me da narrativa de um livro, que li e reli, intitulado: “A última grande lição”, o autor é Mitch Albom e em suas páginas relata as últimas lições recebidas de seu mais querido professor, acometido de uma doença terminal. As lições são semanais e entre elas está o conceito do dia perfeito. Quando Mitch, o autor e aluno atento, lhe pergunta o que faria se tivesse um dia inteiro de perfeita saúde, ele sábio pela vida, sábio pelas transformações da doença, responde: “Deixe ver... eu me levantaria de manhã, faria os meus exercícios, tomaria uma bela refeição de brioches e chá, nadaria alguns minutos, receberia meus amigos para um bom almoço. Eu os receberia em grupos de dois ou três para falarmos de suas famílias, de seus problemas, falar do que representamos uns para os outros...”. Simples assim.
O dia perfeito para minha avó, imaginado por mim, mas tenho certeza que ela concordaria, seria um domingo. Ela acordaria bem cedo e sairia de braço dado com meu avô para assistirem à missa das sete horas na igreja Matriz. Ao voltar ela assumiria o controle do seu lendário fogão à lenha e faria um almoço para a sua numerosa família. Filhos e netos estariam reunidos em volta de uma grande mesa, conversando animadamente e finalmente, em harmonia sobre coisas do cotidiano e ela então se juntaria ao grupo, sentada ao lado do meu avô, contaria algumas histórias que norteiam sua memória e todos escutariam atentos, porque saberiam que essas histórias, embora repetidas, são parte do mosaico que compõe sua trajetória. Depois ela vestiria seu casaco azul e cochilaria no sofá aos sons alegres das crianças correndo pela casa. Quando a tarde estivesse se despedindo, ela se sentaria no alpendre com meu avô e conversariam sobre coisas cotidianas, mas ela não se demoraria muito, pois logo em seguida iria para o seu saudoso fogão à lenha e faria uma deliciosa sopa, cuja fumaça chamaria todos da casa para aconchegar-se na cozinha. Ela ficaria ali, observando todos saboreando sua comida e pensando no quanto ter uma família é gratificante, apesar de todas as dificuldades, apesar de todas as batalhas. E depois de assistir televisão com todos reunidos na sala, ela iria dormir, um sono tranqüilo e cheio de sonhos.
Esse domingo, tão simples e tão perfeito, aconteceu tantas vezes sem ela se dar conta de que era seu presente em forma de dia e agora ele não mais voltará a acontecer, agora só resta o desejo de que ele voltasse, porque os desejos são seres insanos, não entendem a gravidade de uma doença terminal e persistem em existir. Agora também resta a memória para prover a consciência de que os dias perfeitos não têm datas marcadas, estão no presente e por isso chama-se presente. Quando a morte segurar na mão da minha avó e cruzar o portão principal, desejarei, imensamente, que do outro lado todos os dias sejam perfeitos, pois como disse o sábio professor Morrie Schwarts para seu amigo e aluno Mitch Albom: “A morte não é contagiosa. Ela é natural como a vida. Faz parte do contrato.”

Polliana Dias
Escrito em 10 de junho de 2009

No dia 11 de junho, às 11:00 horas da manhã, minha avó faleceu. O texto era para ser uma homenagem em vida e alegrá-la um pouco, desviá-la da dor, mas não tive tempo de mostrar minhas palavras. Fica agora como uma homenagem póstuma para ela que foi tão importante em minha vida.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Também vou-me embora pra Passárgada

O poeta Manuel Bandeira é autor de um poema muito conhecido, o qual diz: “Vou-me embora pra Passárgada/ Lá sou amigo do rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei. (...) Em Passárgada tem tudo/ É outra civilização/ Tem processo seguro”. Por isso pra lá sinto vontade de ir, por tudo que tenho visto e escutado, sinto vontade de fazer minha mala, enchê-la com toda a minha indignação diante de tamanha vergonha, com toda a minha fúria perante tanta barbaridade e fincar moradia na idealizada Passárgada do poeta.
Lá certamente é melhor do que aqui, pois a justiça deve imperar. Portanto isso me faz crer que as pessoas se respeitam e se fazem respeitar pelo seu caráter. De nada importa qual posição social a pessoa ocupa, lá vale mais a pureza dos sentimentos, a beleza das ações, muito mais do que um excelente cargo ocupado, muitas vezes desmerecido, muitas vezes conseguido como troca de favores.
Lá em Passárgada as palavras “molestar” e “estuprar” não existem nos dicionários, pois uma palavra existe quando seu conceito se faz necessário e este inexiste nas atitudes dos homens daquele reino. Pois preciso acreditar que em algum lugar do mundo, seja do real, seja do imaginário, os homens são, simplesmente, humanos e não monstros que aterrorizam crianças com atos sexuais prematuros, lhes roubando a infância e instaurando um pesadelo permanente em suas vidas. Pois eu preciso me segurar em qualquer fio de esperança, roído que seja, capaz de me mostrar um quadro diferente destes que meu ser, completamente humano, não suporta mais ver.
Lá em Passárgada deve haver quem vele pela nossa integridade física e segurança, principalmente pelos mais indefesos. Lá não se faz necessária a presença de um Conselho Tutelar, mas se precisasse, ele seria como aqui estabelecido: para zelar pelos direitos das crianças e do adolescente, porém duvido que ele seria assumido por pessoas despreparadas. Lá os conselheiros seriam designados a agir tendo em mente que esta proteção é algo muito além de um trabalho qualquer, é uma missão e requer ser exercida como se fosse um ato praticado para um filho seu. Duvido também que o povo de Passárgada permitiria que profissionais sem perfil assumissem um cargo de tamanha importância sem avaliar, constantemente, se seus atos são coerentes para tal missão. Por isso Passárgada apareceria no noticiário como sendo o lugar onde as crianças têm a certeza de que são crianças ainda e não adultos em miniaturas, obrigadas a se portarem como escravos sexuais de homens covardes. Homens perdidos em sua própria sexualidade, perdidos em uma crueldade incompreensível, perdidos em si e procurando um pouco de auto-estima no poder exercido no mais fraco. Porque em Passárgada, assim como aqui, não há punição para o crime de pedofilia, mas diferentemente daqui, lá não há impunidade porque não há o crime.
Lá em Passárgada, provavelmente, a civilização é regida pelo “Estatuto do Homem”, escrito por um outro poeta, Tiago de Mello, em que estabelece: “Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa”.
Infelizmente não posso ir embora para Passárgada, embora meu idealismo queira sempre comprar uma passagem para lá, mas posso seguir fazendo com que minhas palavras sirvam para abrir a consciência das pessoas. Pois essa crescente epidemia de pedofilia tão cedo será combatida, porém prossigo com esta esperança incorrigível de que se crie uma vacina eficiente de leis para cessar de vez com essa barbaridade, entretanto se assim continuar, a desconfiança e o medo serão tão devastadores quanto este crime. Enquanto a lei não nos protege de forma efetiva, cabe a nós sermos, sempre, os vigilantes de nossos atos e dos atos dos outros quando estes infringirem o limite de respeito ao próximo.

Polliana Dias

Março de 2009

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Desafiando os limites

Desafiando os limites

O que esperar de um menino pobre, cuja mãe tem como ofício lavar roupas e o pai, pintar paredes? Um menino que não freqüentou a escola regular, mulato, neto de escravos alforriados, isto em pleno século XIX. Juntem a todas estas características, agravantes físicos como a epilepsia e a gagueira. Pode-se imaginar um futuro brilhante para esta criança frente ao contexto apresentado, uma vez que lhe faltou, e possivelmente lhe faltará, grandes oportunidades de se destacar como “alguém” no decorrer de sua vida? Talvez a resposta fosse um não, sonoro e firme. Mas se eu dissesse que a pessoa de quem falo foi contrária ao jogo das previsões sociais? Tornou-se um autodidata, em seguida jornalista, atuou em cargos públicos e para completar, transformou-se em um dos maiores escritores de Língua Portuguesa, tendo seus livros publicados em diversas partes do mundo, você acreditaria? Pois esta pessoa fez tudo isso e poderia não tê-lo feito, poderia ter usado todos os elementos prejudiciais e ter ficado inerte esperando soluções milagrosas vindas não sei de onde, ou ainda se enveredado por caminhos nada lícitos como resposta à vida que tão mal foi contigo. Porém, como bom resiliente que era, galgou ávido todos os altos degraus da estrada do conhecimento e da intelectualidade dando uma resposta invertida às estatísticas e registrou seu nome no ponto culminante da Literatura. Lá está gravado com letras graúdas e brilhantes o nome daquele que desafiou seus limites e as amarras de uma sociedade injusta: Joaquim Maria Machado de Assis.
Machado de Assis é, incontestavelmente, um grande gênio da Literatura. O mérito que ele alcançou não foi sentado em uma cadeira olhando para o tempo, imaginando estórias e esperando que seus livros fossem lidos sem ao menos terem sido escritos. Ele fez, trabalhou, agiu e alcançou a glória. Hoje, cem anos após a sua morte, ele continua vivo e ovacionado pela sua perspicácia, ele só é lembrado porque ousou e realizou.
Engana-se quem pensa que seu legado está presente somente nas aulas de literatura, a obra machadiana, com seu estilo ironicamente inconfundível, é mais atual do que se imagina e mais atrativo do que aparenta. Para escrever seu nome na história ele precisou muito mais do que possuir o dom da escrita, necessitou de um conteúdo extremamente sedutor e o encontrou, não em ficções mirabolantes, mas bem perto de si. Encontrou na observação do comportamento humano um assunto vasto para ser explorado em romances, contos e crônicas. Machado é a grande sentinela das mazelas da sociedade, capaz de descobrir aquilo que se esforça por se esconder, como ele mesmo se define: “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto”.
O exemplo de Machado de Assis, além de exaltar sua maestria, é mostrar que um ambiente desfavorável, a falta de oportunidades e uma sociedade desigual não o impediram de realizar grandes feitos. Porém, quantos intimidam seus sonhos porque não são rentáveis? Quantos se valem de todos os fatores limitadores para justificar sua inércia? A maioria hoje sonha sonhos de ter, não mais os sonhos de ser. Sonham os sonhos do capitalismo e passam pela vida sem realizar nada. Atiram a sua frustração na pobreza, no governo, na violência, no fato de estarem num país de terceiro mundo e tornam-se vítimas de seus próprios pensamentos, deixando-se corromper. Como disse o próprio Machado: “E todas as palavras recolheram-se ao coração, murmurando: ‘Eis aqui um que não fará grande carreira no mundo, por menos que as emoções o dominem... ’”. Para fazer algo de grandioso é preciso dar razão aos sonhos e agir para que eles se concretizem, os limites só tornam o sonho mais tentador.

Polliana Dias Ferreira

Escrito em outubro de 2008


Assistindo à vida em um telejornal

Todos os dias tenho uma escolha a fazer: assistir aos telejornais ou me resguardar de toda a maldade exposta neles. Se escolho a primeira opção tenho de estar consciente que a barbárie mostrada é real, extremamente absurda, e que o fato de ser mostrada na televisão ou estampar capas de jornais renomados, não está longe de me atingir, pode, em minutos, acontecer ao lado da minha casa ou dentro da minha família. Se escolho a segunda opção, me isolo da brutalidade, mas então, me isolo do mundo em que vivo, da realidade cruel que invadiu o cotidiano. Fico alheia às notícias, porém, não imune de ser consumida pela violência a qualquer instante. Pois este é o nosso tempo: um tempo de temor.
Este também é o nosso tempo: o da intolerância. A incapacidade de aceitar modos diferentes de agir, de pensar e de se comportar tem provocado inúmeros crimes. Ligo a televisão e vejo pessoas sendo mortas por motivos inacreditáveis, motivos que testam, diariamente, a minha vontade de acreditar no ser humano e no seu lado bom. Vejo um jovem sendo morto em uma briga porque um segundo jovem não soube admitir que perdeu a namorada para um amigo do primeiro. Em questões de segundos, tudo estava resolvido por um tiro. Vejo um outro jovem que me apavora pela sua frieza. Uma discussão com o pai o deixou terrivelmente enfurecido, a sua intolerância foi tamanha que além do pai, matou a mãe e as duas irmãs. Empilhou os corpos no quintal e quando a polícia chegou, acionada por vizinhos, ele mostrou os corpos, confessou o crime e se entregou serenamente aos policiais como se fosse um campeão subindo ao pódio.
Eis que este é o nosso tempo: o tempo da confusão. Policiais misturam-se a bandidos corrompendo a nossa esperança de que existe alguém cujo intuito é nos protejer. Mostram-se, nas grandes cidades, tão ensandecidos que já virou clichê escutarmos no noticiário que um policial matou, ou atirou, em uma pessoa inocente porque a confundiu com um bandido. E depois se postam na televisão como vítimas, despejando simples desculpas como se seus atos fossem reversíveis, como se vidas fossem compradas na esquina e substituídas assim como as munições de suas armas. Se eles que são encarregados de cumprir a lei, confundem inocentes com bandidos, o que será de nós nessa guerra diária se já não sabemos com quem contar?
Vejo que este é o nosso tempo: o do horror. Um tempo em que vemos pais atirando filhos pela janela; mães que descartam filhos em lixos e lagoas, crianças que trocam a infância por uma vida adulta e se prostituem, crianças que perdem a infância por adultos que as molestam, pessoas que por falta de estudo são escravizadas nos confins do nosso país enquanto políticos, gozam de uma vida rica às custas da ignorância e da inércia de uma população. O horror a que estamos expostos nos mostra seres distantes do conceito de humanos e compreendemos que em muitos, a essência do afeto e do amor ao próximo foi substituída pelo veneno do egoísmo.
Mas este também é o nosso tempo: o tempo do milagre. O mesmo telejornal que mostra cenas aterrorizantes de um mundo caótico, consegue me mostrar que Deus não nos abandonou, mas sim muitos de nós é que O abandonaram. Vejo duas meninas, ambas de oito anos de idade sobreviverem a acidentes de trânsitos arrasadores e saírem ilesas. A primeira ficou mais de 36 horas tentando conseguir socorro para sua prima que estava presa às ferragens e lhe dando forças enquanto esta mantinha-se próxima aos cadáveres dos pais. A outra, num acidente de caminhão perdeu toda a sua família e durante mais de três horas também permaneceu presa aos destroços ao lado da irmã e dos pais mortos. Ao dar uma entrevista, a pequena não se lamentou, disse apenas que agora quer ser feliz junto da família que lhe restou: avós e tios. O terror que assisto a todos os dias nos telejornais me apavora e me entristece demasiadamente, mas os milagres, embora menos freqüentes do que as atrocidades, renovam a minha crença em dias melhores, pois um milagre é para mim o que disse João Cabral de Melo Neto em Morte e Vida Severina: “...é tão belo como um sim numa sala negativa”.

Polliana Dias Ferreira
Escrito em Agosto de 2008

A reforma no cômodo errado

Para começar, escolhi um assunto um tanto polêmico e que tem dividido muito as opiniões dos brasileiros. O assunto é: Reforma da Língua Portuguesa. No dia 16 de maio foi assinado pelo Itamaraty e a Academia Brasileira de Letras o acordo para unificação da ortografia para os países lusófonos, são eles: Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor Leste, Brasil e Portugal. O objetivo desta reforma é unificar a escrita nestes países e assim promover uma integração entre eles.
A proposta no papel é até interessante, justificada pela economia que haverá no sentido de que livros produzidos em Língua Portuguesa não precisarão receber uma tradução particular em cada nação que, aparentemente, falam o mesmo idioma. Neste mesmo raciocínio entra o acesso facilitado a toda a cultura dos outros países e para completar, o fato de que esta unificação lingüística possibilitará estudos sobre uma política de alfabetização comum. Por mais que as mudanças não sejam tão drásticas, são mudanças e requerem tempo para serem assimiladas.
Vejo esta reforma como uma maquiagem, algo que vem para mascarar o que não foi feito. Para aqueles que detestam a Língua Portuguesa pelas suas regras confusas e cheias de exceções, alegram-se pela facilidade que a mudança trará em acentos gráficos excluídos, o trema já obsoleto dando adeus às páginas escritas, hífens que abandonam antigas companheiras, enfim, aprovam a mudança pela facilidade, mas esquecem-se de todo o transtorno que ela trará. Imagine crianças que já foram alfabetizadas sabendo de todas as regras e de repente terão que aprender novamente as regras do português escrito que elas falam com muita destreza e habilidade? A cabeça destas crianças ficará mais confusa do que a própria língua. Livros e dicionários tendo de ser revistos, editados e novamente comprados. A reforma está prevista para entrar em vigor dentro de seis anos, porém os livros didáticos terão dois anos para se atualizarem, haja fôlego!
Não concordo com a mudança porque a enxergo desnecessária. É como se uma pessoa tivesse dinheiro para fazer um investimento a seu favor, a primeira coisa que ela faz é olhar-se no espelho e enxergar milhões de defeitos físicos e pensa: “Estou acima do meu peso, vou utilizar esse dinheiro para dar uma enxugada no meu visual”. Este foi o governo aplicando uma lipoaspiração na Língua Portuguesa, preocupou-se somente com a estética e não com a real causa do problema. Se a pessoa que poderia fazer o investimento, investisse em seu crescimento intelectual não daria tanta importância aos fatores estéticos, compreendendo que a melhor mudança é aquela conquistada todos os dias. Se assim agisse, o governo entenderia que o enxugamento a ser feito é no semi-analfabetismo instaurado nos bancos das escolas, trocaria redução de hífens por aumento de salários e formação continuada para os professores, no lugar de exclusão de acentos gráficos, instauração de um novo modelo de ensino condizente com a realidade de cada região e faixa etária. Ao invés de uma reforma da Língua Portuguesa, a construção do conhecimento com base na amplitude da nossa língua e da nossa cultura, pois a reforma a ser executada é na Educação Brasileira.
O velho português já sofreu mudanças e poderia continuar sofrendo ao longo dos anos, não há línguas estáticas, pois não há falantes aprisionados em gramáticas normativas. O que não me agrada é reformar o cômodo que pode agüentar mais alguns vendavais e tempestades enquanto a parte da casa que está desabando não recebe atenção.

Polliana Dias

Julho de 2008

Rir ainda é o melhor remédio

Para começar, façamos um trato, que tal esquecer de todos os fatos desagradáveis que inauguraram o ano de 2009? Ele ainda é apenas um bebê e engatinha sobre uma crise financeira horrenda, se lambuza em inúmeras contas a serem pagas já no primeiro mês de vida, sem contar o mau tempo em que foi concebido: enchentes devastadoras desabrigando centenas de famílias. Coitados de nós que estamos inseridos neste panorama e só temos uma escolha: viver 2009, não há outra saída. Portanto, pratiquemos esta façanha da melhor maneira, ou seja, dando um banho de otimismo nos dias que virão.
Acredito nas frases iniciais da música Samba da Bênção do poeta Vinicius de Moraes em parceria com Baden Powell, as quais dizem: “É melhor ser alegre que ser triste/ A alegria é a melhor coisa que existe/ É assim como a luz no coração”. Praticar a alegria é fácil, mas carece de motivos. A felicidade sim pode estar em lugares mais distantes, já a alegria não, ela é óbvia, alcançável, nítida, e por isso é desprezada pela facilidade com que se apresenta.
Este sentimento contagiante não é habitualmente encontrado em atitudes como ganhar na loteria, comprar o carro do ano, a roupa da moda, viagens caríssimas, casas suntuosas. Descubra os prazeres que grandes somas de dinheiro não compram e os pratique, geralmente eles residem nas coisas mais simples, porém mais gratificantes, possuindo a maior e mais duradoura dose de alegria. Quer exemplos?
Para ser alegre não é necessário ser comediante ou humorista, mas rir de si mesmo é fundamental. É provocar o riso nos outros e rir junto. Quem sabe até gargalhar para trocar o ar do pulmão, ou chorar de rir, essas são as lágrimas mais adocicadas! Para isto, procure as pessoas propensas ao riso, isto é, aquelas que não se deixam convencer por tristezas baratas. Bom humor é infalível para abrir as cortinas do cinza e deixar os ares coloridos arejarem os espaços da alma.
Há um livrinho de crônicas chamado “Coisas que dão alegria”, escrito por Rubem Alves, no qual em um de seus textos ele afirma: “Deus é alegria. Uma criança é alegria. Deus e uma criança têm isso em comum: ambos sabem que o universo é uma caixinha de brinquedos. Deus vê o mundo com olhos de criança. Está sempre à procura de companheiros para brincar”. Você se habilita a ser um deles?
O riso, manifestação pura da alegria, é capaz de amenizar doenças, quem ri tem mais anticorpos para combater as enfermidades da alma. Porém, os resistentes que acreditam que alegria em altas dosagens é o mesmo que viver num circo, digo-lhes que num circo nós já estamos, pensemos: andamos sempre na corda-bamba com toda esta violência que nos assola, temos de domar nossas feras para vivermos em sociedade; fazer mágica com nosso salário até o fim do mês e, além de tudo, parecemos palhaços para os governantes corruptos que surrupiam nosso dinheiro e riem de nossa inércia diante dos absurdos. Nosso cenário é um circo e a alegria pode ser um ingresso para adentrar o ano com tática para driblar as atrocidades e tristezas injetadas no cotidiano. Desejo é que 2009 seja uma criança desenvolvendo-se saudável em sua vida, porém se em algum momento ela lhe parecer doente, aplique uma injeção de alegria, pois rir ainda é o melhor remédio.

Polliana Dias Ferreira
Escrito em Janeiro/2009 e publicado na revista Revista Hoje Magazine e Jornal Folha de Patrocínio